quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Em nome de Deus?

Em nosso país, nos últimos anos, ocorreram muitos embates de militantes do movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros) e de grupos religiosos em torno da percepção da sexualidade humana: o projeto de lei da criminalização da homofobia PLC 122 - projeto este muito debatido no Congresso Nacional, com fortes ataques de grupos evangélicos; o reconhecimento da união homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e até embates na área da psicologia, com alguns psicólogos cristãos sendo denunciados junto ao Conselho Federal de Psicologia pela conduta profissional no caso da homossexualidade.

Manifestantes protestam em Brasília em favor da aprovação do Projeto de Lei 122 - PLC 122

Por um lado temos grupos de minorias lutando por direitos básicos, garantidos pela Constituição Federal, porém com carência de legislação sobre o tema e, por outro lado, religiosos que ignoram princípios de direitos humanos para defender seu legalismo cristão, com grandes dificuldades em debater o tema dos direitos sociais e sexuais de pessoas com orientações sexuais distintas da heterossexual.
Grupos religiosos protestam em frente ao Congresso Nacional contra a aprovação da PLC 122
Um artigo intitulado "Homossexualidade e Igrejas Cristãs no Rio de Janeiro" dos pesquisadores José P. Simões Neto (UFRJ), Maria das Dores C. Machado (UFRJ), Fernanda D. Piccolo (IFRJ) e Luciana P. Zucco (UFRJ), publicado na revista Rever, analisa o debate sobre as distintas expressões da sexualidade humana no interior das igrejas cristãs situadas na região metropolitana do Rio de Janeiro - as igrejas Católica, Luterana, Batista, do Evangelho Quadrangular, Presbiteriana, Assembleia de Deus e Congregação Cristã no Brasil.

Segundo a pesquisadora Regina S. Jurkewic (coordenadora executiva e uma das fundadoras da ONG Católicas pelo Direito de Decidir), o cristianismo de modo geral tem três posicionamentos distintos frente à homossexualidade:

O primeiro, de rechaço total, é encontrado entre aqueles que interpretam a homossexualidade como uma conduta antinatural e pecaminosa. Apesar de associar a conduta homossexual com a perversão, esse grupo tende a defender o acolhimento na Igreja daqueles que reconhecem a necessidade de mudar de comportamento e pedem ajuda.

Uma segunda postura vê a conduta homossexual como aceitável, embora inferior, sugerindo aos incapazes de se ajustar ao estilo de vida heterossexual ou de manter abstinência que canalizem sua atividade sexual em uma relação estável.

E a terceira posição, que considera a homossexualidade tão digna quanto a heterossexualidade, afirmando que o pecado não está na homossexualidade em si, mas na exploração dos parceiros, fenômeno que pode ocorrer também nas relações heterossexuais.

O artigo citado acima aponta na direção da análise de Jurkewic. Os católicos identificam uma posição mais flexível associadas aos setores progressistas que defendem o acolhimento daqueles que fogem aos padrões heterossexuais sem a pretensão de alterar a orientação sexual. Porém se, por um lado, a doutrina católica se propõe inclusiva para as minorias sexuais, por outro, é muito taxativa na defesa do tratamento com especialistas e da abstinência sexual para os que não conseguem se aproximar do padrão de comportamento heterossexual. Já entre os evangélicos brasileiros o discurso em relação à homossexualidade não é único. Uma primeira postura, facilmente associada aos grupos pentecostais, interpreta a homossexualidade como uma possessão ou problema espiritual e, como tal, tem sua superação condicionada à experiência religiosa. A segunda, elaborada a partir de uma visão psicologizante que associa a homossexualidade com problemas no processo de socialização ou traumas na infância, percebe a identidade homossexual como uma deformação e propõe a criação de ministérios de ajuda e trabalhos de recuperação do homossexual. E, finalmente, uma terceira postura, mais recente e liberal, que desloca o foco da orientação para o comportamento sexual. Nessa vertente estariam os setores evangélicos que colocam os homossexuais e os heterossexuais em planos equivalentes e, portanto, sujeitos às mesmas normas que valorizam as relações estáveis e monogâmicas.

Os pesquisadores entrevistaram líderes religiosos das igrejas acima citadas, na região metropolitana do Rio de Janeiro, nos anos de 2007 e 2008.

Abaixo transcrevo a posição dos líderes à respeito de como tratam a homossexualidade em suas respectivas igrejas.

A igreja Católica

Embora o Vaticano tenha produzido, nas últimas décadas, uma série de documentos condenando a homossexualidade e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) endosse a maioria das posições assumidas pelo papado atual no campo da sexualidade, da contracepção e da prevenção das DST/AIDS, pesquisas recentes revelam discursos e ações diferenciadas em relação às demandas dos segmentos LGBT que expressam uma abertura ao diálogo com as outras esferas de valores da sociedade. Os dados colhidos na pesquisa confirmam essa tendência de negociação cognitiva por parte de alguns segmentos católicos locais com o discurso dos direitos humanos e com algumas teses das áreas biomédicas e da psicologia, mas também revelam posições mais reativas e defensivas que se alinham com o discurso oficial e as orientações da Santa Sé sobre esse leque de questões.

A igreja Luterana

Segundo o líder (pastor) entrevistado, a sexualidade não se encontra mais diretamente relacionada à dimensão da procriação. Ele também aponta para um movimento de questionamento da heteronormatividade, que caracteriza a maioria das doutrinas religiosas do mundo cristão.

O pastor afirma que a Bíblia não pode ser interpretada ao pé da letra, porque, segundo ele, se "você for por aí, vai cair em muitas coisas perigosas. A função do teólogo é reinterpretar a Bíblia pra cada época, pra cada geração".

Assim, afirma que a sua tradição religiosa parte do princípio da liberdade:

"Lutero escreveu um livrinho 'A Liberdade Cristã', em que ele vai conceituar a liberdade dizendo que o cristão, pela fé, é um ser livre de tudo e de todos. E que é pelo amor que ele é servo, escravo de todos. Então, a marca registrada do Luteranismo é a liberdade [...] As pessoas preferem as que dizem o que têm que fazer, qual deve ser o comportamento sexual delas. E a nossa igreja, quando vai receber os membros, não pergunta qual é a orientação sexual desta pessoa, não há policiamento ideológico, muito pelo contrário, ela tem feito vários documentos em defesa das chamadas minorias".

O pastor sugere que a orientação sexual é, portanto, uma questão que diz respeito apenas ao indivíduo. Ou seja, ele tem, nessa congregação, o direito de usufruir de sua liberdade de decisão e de autonomia frente a sua sexualidade.

Para ele, o orientação sexual do indivíduo não é um problema para a liderança religiosa.

A igreja Batista

Para o pastor desta igreja a questão da sexualidade também não está diretamente relacionada à procriação, porém apresenta uma visão distinta à visão do pastor da igreja Luterana. Para ele, a sexualidade está e deve continuar associada ao casamento heterossexual e monogâmico.

Em sua igreja, os adultos que vivem juntos e não são casados não podem votar e nem ser votados para assumir cargos e tomarem decisões sobre os rumos da comunidade religiosa. Consequentemente, ele se recusa a "apresentar à comunidade" os bebês que não sejam frutos de uniões religiosas ou civis.

Nesse sentido, não apenas comunga das clássicas atribulações do feminino e masculino nas relações amorosas e sexuais, mas as reafirma como processos inerentes aos sexos, logo como resultados da ordem da natureza, ou seja, de uma força criadora maior.

Priorizando a leitura dos livros da Bíblia que compõe o Antigo Testamento, ele justifica sua condenação à homossexualidade em função de que, para ele, se trata de uma escolha moral, da vontade, do desejo:

 "Uma escolha errada, pecaminosa. A palavra é esta, por mais dolorosa que seja. Não quer dizer que outras práticas humanas - como a maledicência, como o roubo - também não sejam pecaminosas. Não estou comparando práticas. Estou dizendo apenas que há outras práticas igualmente pecaminosas. Ou seja, não há pecados pequenos ou grandes, pecado é pecado!"

O pastor afirma ainda que em sua comunidade, a orientação sexual não é um tema importante, porque, até o momento da entrevista, foram raros os casos de fiéis homossexuais e, quando aparece alguém com "esse problema" na família, ele os encaminha para tratamento psicológico. Defende, ainda, a posição de que ao homossexual cristão só resta uma saída: a castidade.

Aqui nos defrontamos com a representação da homossexualidade como um distúrbio ou uma desordem emocional oriunda de traumas ou problemas familiares, concepção que expressa mais uma vez a apropriação dos discursos da Psicologia e da Biomedicina por parte dos religiosos.

E finaliza com os seguintes dizeres:

"Eu não posso falar pelos evangélicos, nem pelos batistas. E eu gostaria de dizer que é uma questão muito complexa, desde a dimensão científica até a dimensão bíblica. No entanto, a Bíblia é absolutamente clara e precisa na condenação ao exercício da homossexualidade. E, aí, eu penso que o evangélico não tem saída. Se ele procura conduzir a sua vida com os princípios bíblicos, ele não deve exercê-la".

A igreja do Evangelho Quadrangular

A pastora entrevistada fez a associação da homossexualidade com possessão demoníaca e também com a escolha pessoal do indivíduo, ou seja, as pessoas que são homossexuais, são por escolha própria. 

"Nem todo mundo que opta pelo mesmo sexo tem opressão maligna. Acho que a maioria das vezes a pessoa faz a escolha. Mas, eu conheço uma senhora que ela era lésbica e era oprimida. Ela tinha uma pomba-gira, que levava ela pra homossexualidade. Quando o demônio se manifestou nela, ele próprio falou que era ele que estava levando ela a fazer esse tipo de coisa. Quando ela ficou liberta deixou de ser lésbica e hoje em dia é casada e tem filhos. Ela mudou de valores e já não vê mais a mulher do jeito que ela via. Foi uma opressão demoníaca".

O depoimento da pastora é emblemático nesse sentido. Ela não batiza e não permite que os homossexuais que frequentam os seus cultos se tornem membros efetivos da comunidade até que "abandonem" as práticas homoeróticas. Sua expectativa também é de que as pessoas com orientação homossexual alcancem uma "libertação" de seu modo de vida e dos desejos da "carne":

"Tem um rapaz, que é homossexual e até corta o meu cabelo, que uma vez ficou doente, veio aqui, foi lá na frente, eu orei por ele e ele ficou curado. Ele andou até vindo um tempo, aí depois ele se afastou e falou pra mim que: 'ah, eu queria tanto seguir, mas a minha carne está sendo mais forte que o meu espírito'. Aí eu falei pra ele: 'é mais forte aquilo que você alimenta mais' ".

É nessa perspectiva que se coloca como favorável às iniciativas dos grupos religiosos que desenvolvem atendimentos especiais às pessoas homossexuais, com o intuito de ajudá-los a combater aquilo que é visto como as causas do comportamento homossexual: os "demônios" e a opressão maligna que exercem sobre os indivíduos, visto que são tomados como entidades mágicas com poderes para atuar sobre as vontades, valores e práticas das pessoas. De qualquer maneira, ela afirma que é preciso muito cuidado no atendimento às pessoas com orientação homossexual.

 "Quando a pessoa está com problema ou um pecado, a última coisa que quer é ouvir sermão ou que 'você vai pro inferno ou você já está perdido'. Se você vier com quatro pedras, a pessoa que está na beira do precipício vai se jogar ou vai embora. Então a gente conversa. Para os rapazes que nos procuram, nós mostramos com a palavra que devem deixar o homossexualismo, porque Deus os ama, não ama o que estão fazendo".

A visão, portanto, da homossexualidade como algo externo e que domina o corpo físico, emocional e espiritual dos sujeitos, se apresenta novamente nos discursos da pastora, fazendo coro com outras lideranças evangélicas e a partir de explicações semelhantes. Se, por um lado, há um agente externo acusado de ser o causador do "problema" ou do "pecado", por outro os fieis igualmente são chamados à responsabilidade de se permitirem viver as "tentações" impostas à carne.

Essa pastora, que atua profissionalmente na área jurídica, afirmou ter ajudado um rapaz com orientação homossexual em um processo de adoção. A análise de seu relato sugere que a dupla inserção dessa liderança – nas esferas jurídica e religiosa – favoreceu a atitude de maior diálogo com a demanda pela adoção de crianças e que justificasse assim a sua atitude:

 "Eu acho que de repente até eles vão tratar melhor a criança do que um casal hetero. Eu, inclusive, ajudei um rapaz, não era um casal, mas era homossexual. Ele pediu minha ajuda, como advogada,
pra adotar duas crianças, e ele adotou dois meninos. Eu tenho acompanhado a criação desses meninos desde que ele pegou e um já tem dezessete anos e o outro garoto tem quatorze. Eu acho que
ninguém poderia ser melhor pai do que ele. Ele não cria com outro homem não, ele cria sozinho".

A igreja Presbiteriana

Curiosamente, os dois pastores presbiterianos entrevistados abandonaram a denominação de origem, atuam como pastores em igrejas novas e pequenas e apresentam visões críticas com relação à hierarquia de suas antigas comunidades. Um deles foi consagrado na Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), de caráter mais tradicional, e o outro, na Igreja Presbiteriana Bethesda, que surgiu na década de 90 do século passado de uma cisão no interior da IPB. O primeiro é pastor há mais de dezesseis anos e o segundo há sete. De acordo com o primeiro,

"Na Igreja Presbiteriana do Brasil tem uma nuvem nessa questão da sexualidade e um monte de coisas não ditas e algumas mal ditas. O posicionamento oficial da igreja é contra o sexo antes e fora do casamento. E há uma dificuldade muito grande de lidar com essa questão da homossexualidade.

Os homossexuais estão nas igrejas, mas ficam completamente em surdina, porque a  homossexualidade é vista como pecado [...] Agora, na minha igreja atual, ninguém quer saber da sua sexualidade, como é que você vive ou deixa de viver. Eu acho que as pessoas são bastante livres pra viver do jeito que elas acham. A ideia é essa: assume a sua vida diante de Deus, o que que você quer.

Você querer universalizar uma passagem bíblica, sobretudo da vida de Jesus, é muito difícil. Dizer que Jesus era contra os homossexuais, é muito difícil. Eu acho que a Bíblia tem que ser relida e  interpretada nesse sentido: a partir desses aspectos mais culturais e históricos. E temos que nos perguntar: 'qual é o elemento universal daquele texto?' Dizer que a orientação homossexual
é pecaminosa ou que é contrária à vontade de Deus, eu, sinceramente, não diria isso hoje".

Mas, se a homossexualidade não é um pecado, também não é um comportamento "normal" na acepção desse pastor:

 "Eu tenho um parente homossexual, que eu adoro. Mas o fato de adorá-lo não é a mesma coisa de eu dizer que: 'Aceito totalmente a homossexualidade. Eu acho a coisa mais normal do mundo!' Eu gostaria de fugir desses chavões, ou seja, de dizer que eu aceito a homossexualidade, que é uma coisa normal porque isso é politicamente correto. Não! Isso não é tão claro pra mim, não. Aliás, é exatamente por não achar tão normal que eu penso que é essa coisa tensa, que tem que ser falada.
Tem muita coisa a ser esclarecida ainda, tem muito caminho a trilhar".

De qualquer maneira, sugere que as explicações para o comportamento homossexual se encontram nas relações familiares, principalmente na relação dos pais com seus filhos. Segundo suas palavras, "determinadas mães, determinados pais geram determinados comportamentos sexuais", até porque a "família, que é um núcleo formador e estruturador da personalidade humana, pode também ser deformadora".

Já o segundo pastor entrevistado, traz novas e ricas informações sobre as tensões e ambivalências no interior da tradição presbiteriana. Oriundo de uma comunidade liberal constituída a partir de um racha dentro da Igreja Presbiteriana do Brasil – a Igreja Presbiteriana Bethesda – e cujo pastor titular foi o responsável pelas primeiras celebrações religiosas de uniões entre homossexuais na cidade do Rio de Janeiro, ele vai apontar os limites do trabalho junto aos homossexuais:

"As pessoas foram atraídas pelo pastor [principal], que já morreu. Ele foi o primeiro sacerdote no Brasil a levantar publicamente a bandeira do casamento gay. Eu trabalhei nove anos com ele e fiz pessoalmente muitas críticas a ele, porque ele acabou reforçando a vitimização nas pessoas [...]
Porque as pessoas começaram a chegar lá como coitadas e viam os outros pastores como os libertadores, os messias da história. Então, as pessoas iam procurar os nossos casamentos, mas, rapidamente, como muitos que procuram uma religião, como uma bengala, começaram a ver que a nossa proposta era justamente quebrar as bengalas. Então muitas saíram de lá e procuram essas igrejas gays que seguem esse modelo da bengala".

A igreja Assembleia de Deus

Para o pastor desta igreja, a visão do feminino e do masculino foram igualmente retificadas.

A Assembleia de Deus é uma denominação pentecostal que reluta em rever o sistema de distribuição de autoridade em benefício das mulheres, caracterizando-se como uma questão importante, uma vez que se percebeu uma continuidade entre as representações tradicionais de gênero e os discursos moralistas do pastor sobre a homossexualidade.

A percepção da homossexualidade como erro ou pecado aparece novamente no discurso do pastor. Ele acredita que a homossexualidade pode ser fruto de carências afetivas, doença e distúrbios mentais, que podem ser tratados, ou de abuso sexual na infância e/ou adolescência. No intuito de mostrar que isso pode acontecer, mas que a pessoa pode ser mais forte e "fugir" da "desgraça" da homossexualidade.
Ele relatou ter sido assediado sexualmente por um professor homossexual durante sua formação religiosa na adolescência, e, caso não tivesse fugido do seminário naquela ocasião, esse fato poderia ter "desgraçado" sua vida.

Como as causas dadas ao comportamento homossexual são externas ao indivíduo, em sua igreja é feito um acompanhamento, via "análises" realizada na "clínica de aconselhamento", localizada na própria sede da igreja, até acontecer a purificação. "Eu preciso desse povo aqui, então, preciso dar carinho e ajudar essas pessoas", comenta o pastor.

O "tratamento carinhoso" dado aos que assumem a orientação sexual gay e/ou lésbica não exclui, contudo, as sanções e o tratamento discriminatório na comunidade. Erro ou pecado comparável ao adultério, o comportamento homossexual, quando relatado aos pastor, provoca sanções no interior da comunidade.

"Há uma disciplina, geralmente três meses afastado daquilo que a pessoa gosta de fazer na igreja... a gente procura afastá-lo da função para demonstrar que aquilo não foi agradável para ele".

A discriminação, entretanto, vai muito além da suspensão temporária das atividades nas celebrações. É construída uma fronteira que demarca, mais estreitamente, os campos de possibilidades dos fiéis, em nome de um modelo de família heterossexual, e da interpretação da Bíblia. De acordo com o pastor,

"a igreja jamais vai colocar a educação de uma família nas mãos de um homossexual. Para ele destruir? Porque a homossexualidade não é modelo a se copiar. É uma opção de vida, que à luz da Bíblia e do meio evangélico, pelo menos na Assembleia de Deus, não se deve copiar. O que a gente defende é um lar com macho e fêmea, família, equilíbrio, saúde e muito sexo".

Seguindo um raciocínio bastante circular, esse pastor afirma que as relações homoafetivas expressam o distanciamento de homens e mulheres da religião, situação que tende a aumentar a vulnerabilidade desses sujeitos "às forças malignas e aos vícios incontroláveis depois que se inicia a prática dos atos de homossexualismo".

Ainda que os argumentos da magia se façam presentes no discurso sobre a homossexualidade, reconhece a capacidade dos sujeitos que vivem as relações homoafetivas de fazer escolhas e a eles imputa a "responsabilidade" por terem deixado seu corpo aberto às "possessões". De acordo com suas palavras:

"Existem pessoas que praticam atos de homossexualismo, vítimas de maldições. Essas maldições, esses espíritos, essas possessões, vêm a partir de quê? O diabo não entra na tua vida sem encontrar uma razão. As pessoas imprimiram essa desculpa para se livrar da responsabilidade dos seus erros.
O ser humano está na frente, o diabo vem depois. Você é tentado, mas você tem as oportunidades de não fazer. Se você praticar, aí sim vão vir as consequências, o andamento do processo de destruição".

A igreja Congregação Cristã no Brasil

Durante a entrevista, o ancião (líder da igreja), fez-se acompanhar pelo advogado da igreja, que também é diácono.

O advogado argumentou que o tema homossexualidade ainda não havia sido incluído na agenda de discussões da denominação e, fazendo coro com o ancião, acrescentou que a experiência de participação na pesquisa seria relatada aos companheiros, com a solicitação de uma tomada de posição da comunidade congregacional.

Com o estatuto da igreja em mãos, o advogado intervinha sempre com o intuito de preservar juridicamente a instituição religiosa e demonstrar a posição de alinhamento do grupo com a Constituição brasileira.

O ancião apresentou concepções tradicionalistas das relações de gênero e da sexualidade humana, ancoradas em uma leitura literal da Bíblia e, portanto, não histórica das escrituras.

Tal posição torna a assimetria de gêneros (homem e mulher) muito acentuada na comunidade religiosa, com os homens assumindo as posições mais proeminentes na hierarquia. Segundo ele, as mulheres só podem atuar nas áreas de música e de assistência social. Na primeira, elas tocam órgão e ensinam música, na segunda, se ocupam da "Obra da Piedade", realizando visitas nos lares e nos hospitais.

Em relação à homossexualidade, afirma não ter opinião formada "sobre essa coisa séria, esse negócio sério" e dirige seu olhar para o advogado, que, em seu socorro, acrescenta:

"É, até hoje os médicos não sabem dizer se [a homossexualidade] é uma doença, por isso nós não nos metemos na opção sexual das pessoas, só aconselhamos ao pé do ouvido".

Distintamente do religioso-advogado, o ancião utiliza argumentos religiosos para tentar convencer a entrevistadora de que sua igreja "tolera" aqueles que "se desviaram" e foram para o "mau caminho". Para ele, 

"Quando Cristo veio para ser a salvação do homem, disse: vinde a mim como estais. Se Ele falou isso e sabia que tinha no mundo pessoas com essa natureza, é porque não se pode ficar dizendo:
se é branco é bom; se é prostituta ou GLS é isso e aquilo... Do jeito e quando a pessoa vier, ela vem para a graça e aí nós orientamos e aconselhamos a se desviar do mau caminho. Mostramos que, Deus fez a natureza dele pra ser homem e pra ser mulher. Agora, se ele não é homem suficiente pra cumprir a lei de Deus, aí cabe a nós tentar ajudar... Então, quando essas pessoas vêm pra cá,
elas vêm como qualquer outra pessoa e seu peso é o mesmo meu. Eles negaram a natureza deles?
Segundo as escrituras negaram e erraram, mas não querem errar mais. Então, Deus vai ajudar e alguns homens e mulheres se recuperam..."

A interpretação apegada à letra do evangelho e o uso insistente das categorias "erro", "queda" e "desvio" sugerem a adesão dos dois líderes religiosos à perspectiva criacionista, que rejeita a tese evolucionista de Darwin e enfatiza a ação divina na constituição da natureza e da vida social. Nessa perspectiva, oriunda dos Estados Unidos e em expansão no Pentecostalismo brasileiro, Deus criou homens e mulheres como seres naturalmente complementares, entendendo a complementaridade em termos dos elementos necessários para a reprodução humana, e fugir desse arranjo é "negar", "desobedecer", rejeitar a ordem divina.

Segundo o ancião, "sanção ou castigo não existe" (em relação aos que se declaram ou que se imagina se homossexual).

"Existe alguma restrição à liberdade de representar a Igreja, a liberdade de pregar ou orar e representar a Igreja. Quer dizer, não é propriamente uma sanção (...)".

Por sua vez, o advogado afirma:

"Frequentar a Igreja, todos têm direito. É constitucional e não podemos impedir. Evidentemente se existe uma pessoa, gritantemente efeminada, ela não vai poder exercer um cargo na congregação".

Logo, as atitudes pastorais não se limitam à orientação nesse ou naquele sentido, mas implicam também na interdição dos segmentos LGBT aos postos de representação do grupo e mesmo restrição às formas de participação no culto: não pregar, não testemunhar, entre outros.

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